“O Espírito do Senhor está sobre mim, porque ele me consagrou com a unção, para anunciar a Boa Notícia aos pobres” [i].
A Família Vicentina em toda a Igreja tem a alegria de celebrar o Jubileu dos 350 anos da morte de São Vicente de Paulo e Santa Luísa de Marillac (27 de setembro de 2009 a 27 de setembro de 2010). De fato, é uma data feliz porque é uma oportunidade de não somente fazer a memória dos santos fundadores, mas de rever os passos dados durante todos estes anos. A presente reflexão pretende abordar, brevemente, sobre algumas intuições do carisma vicentino que traduzem com perfeição e ousadia profética o significado deste Jubileu. Buscar o significado da morte dos fundadores da Família Vicentina significa retomar a centralidade do carisma, a fim de que o mesmo permaneça aceso na vida da Igreja e do mundo.
O carisma vicentino
Ninguém melhor do que São Vicente para falar claramente sobre o sentido verdadeiro do carisma. Aos Padres da Missão ele diz:
Fazer os pobres conhecerem a Deus, anunciando-lhes Jesus Cristo, dizer-lhes que
o reino dos céus já chegou e que este reino é para os pobres. Como isto é
grande! E que fomos chamados para ser companheiros e para participarmos dos
planos do Filho de Deus, é algo que supera nossa compreensão. Que! Fazermos...
não me atrevo a dizer sim; evangelizar os pobres é um serviço tão grande, que é
por excelência o ofício do Filho de Deus! Somos instrumentos para que o Filho de
Deus continue fazendo no céu o que fez na terra. Que grande motivo para louvar a
Deus, meus irmãos, e agradecer incessantemente esta graça.[ii]
Pontuemos alguns aspectos desta citação vicentina:
1) Fazer os pobres conhecerem a Deus, anunciando-lhes Jesus Cristo. Anunciar a pessoa de Jesus e seu Evangelho: eis a missão de todo cristão. Com isto, percebemos que São Vicente de Paulo era um homem sintonizado com o Evangelho e profundamente cristológico. Os seus escritos revelam que sua preocupação fundamental era o anúncio da Boa Notícia aos pobres. Era um homem preocupado com os pobres, a exemplo de Jesus. O santo fundador recorda à Igreja o anúncio do Evangelho aos pobres numa realidade em que estes eram praticamente esquecidos.[iii] Tendo em vista a evangelização dos pobres, São Vicente funda as confrarias da caridade (1617), a Congregação da Missão (1625) e a Companhia das Filhas da Caridade (1633). Estas Comunidades nasceram com destinação especial e fundamental: os pobres.
2) Dizer-lhes que o reino dos céus já chegou e que este reino é para os pobres. O Evangelho mostra claramente que Jesus veio a este mundo para inaugurar o Reino de Deus. Na citação de Lc 4, 18 encontramos as primeiras palavras de Jesus ao assumir publicamente a missão. O autêntico sentido do texto revela que o Ungido do Pai[iv] assegura que a Boa Notícia é para os pobres. Jesus faz tal proclamação porque sabia que os pobres sempre foram as maiores vítimas das opressões produzidas pelos sistemas que governaram e governam este mundo. É justamente por isso que a Igreja latino-americana tomou a iniciativa de tomar para si esta opção de Jesus: opção preferencial pelos pobres.[v]
3) Evangelizar os pobres é um ofício tão grande, que é por excelência o ofício do Filho de Deus. São Vicente nos ensina que ser missionário é participar da missão do Filho de Deus, ou seja, evangelizar. Evangelizar, segundo São Vicente, é servir aos pobres: “Não há melhor modo de assegurar nossa felicidade eterna do que viver e morrer no serviço dos pobres, nos braços da Providencia e numa verdadeira renúncia a nós mesmos em seguimento de Jesus Cristo".[vi] Este viver e morrer no serviço dos pobres, para São Vicente, significa evangelizar. Assim, não podemos entender evangelização fora do serviço dos pobres. Com mais ênfase podemos afirmar: Se não há serviço afetivo e efetivo aos pobres não há evangelização. O chamado de Deus é para que todos os batizados sejam continuadores da ação missionária de Jesus, participantes de sua missão.
Fidelidade ao carisma
Em Paris, França, entre os dias 18 de junho e 16 de julho do corrente ano, a Congregação da Missão celebrou a sua 41ª Assembléia Geral. Eis o que diz o Documento conclusivo:
Fidelidade a nosso carisma significa continuar o amor de Cristo e o serviço dos
Pobres. Os Pobres chegaram até nós, de modo impactante, através dos vídeos que
marcaram cada sessão. Os Pobres não são meras categorias, são pessoas reais, com
necessidades e sofrimentos reais. Falam-nos porque esperam que os escutemos, que
ouçamos suas histórias e não lhes viremos as costas. Nossa resposta irá além do
minuto de interiorização, da oração pessoal e das celebrações litúrgicas. Como
São Vicente, que contemplou o rosto de Cristo nos Pobres de seu tempo e procurou
remediar seus sofrimentos, também nós devemos ser suficientemente valentes para
partilhar sua pobreza. Movidos pelo amor, iremos aonde os Pobres nos chamarem,
inclusive aonde outros não se atrevem a ir, e sempre encontraremos formas
criativas para remediar as necessidades deles.[vii]
A humildade leva-nos ao reconhecimento da condição humana e suas inerentes fraquezas. Partindo desse pressuposto, é preciso admitir que há uma crise carismática em todas as famílias religiosas que formam a Igreja. Com muita facilidade e de maneira pecaminosa, os carismas dos fundadores são esquecidos e/ou relativizados em nome de algumas releituras e atitudes que se mostram cada vez mais equivocadas. Por outro lado, é preciso admitir, também, que há significativo esforço por parte de muitos membros das famílias religiosas para reacender ou ressuscitar tais carismas, tão necessários para a construção do Reino de Deus. Os carismas que visam tal construção são verdadeiros frutos da ação do Espírito Santo na vida de mulheres e homens que se deixaram conduzir pelo amor que se faz serviço gratuito e generoso ao próximo.
No caso da Família Vicentina, composta por dezenas de ramos chamados ao serviço fraterno dos pobres, trata-se de zelar por aquilo que diz a citação acima. Frisemos, pois, alguns pontos relevantes para nossa reflexão, a saber:
1) Fidelidade ao nosso carisma significa continuar o amor de Cristo e os serviço dos Pobres. Continua-se o amor de Cristo no serviço dos Pobres, ou seja, não podemos entender o amor de Cristo fora do serviço aos Pobres, pois Jesus não fez outra coisa em sua passagem no mundo senão servir os pobres.[viii] Nenhum ramo da Família Vicentina pode se deixar levar pela onda espiritualista que invadiu a Igreja de nossos dias, afastando-a do seguimento de Jesus de Nazaré. Os espiritualismos produzem superficialidade e alienação e é um mal constante na Igreja.[ix] Trata-se de uma alienação que distancia do serviço e da “vivência” de uma fé sem caridade. Sem esta, a Família Vicentina perde o seu sentido de existir na Igreja.
2) Como São Vicente, que contemplou o rosto de Cristo nos Pobres de seu tempo e procurou remediar seus sofrimentos, também nós devemos ser suficientemente valentes para partilhar sua pobreza. A conversão de São Vicente aconteceu no encontro com o pobre.[x] Para ele, o pobre foi o lugar de encontro com Cristo. Hoje, a própria Igreja resolveu tentar assumir o pobre como lugar teológico e declarou que a opção pelos pobres está implícita na fé cristológica[xi] da Igreja. Para que tal opção se torne afetiva e efetivamente presente na vida da Família Vicentina e na vida da Igreja é necessário que sejamos suficientemente valentes, ou seja, trata-se de uma opção de vida. Optar pelos pobres exige coragem e ousadia profética, pois é uma missão difícil, que exige sacrifícios e renúncias e, muitas vezes, a entrega total da própria vida.[xii]
Participar da pobreza dos pobres é um desafio imenso, pois o mundo demoniza a pobreza e a produz constantemente. São Vicente e Santa Luísa nos ensinam que participar da missão de Jesus é participar da vida dos pobres e esta participação consiste no despojamento total de nós mesmos para o seguimento de Jesus evangelizador dos Pobres. Em termos práticos significa abraçar um estilo de vida humilde e simples como o dos pobres; participar de suas lutas e esperanças; reivindicar, defender e promover seus direitos e sua dignidade; denunciar as injustiças que lhes são cometidas e celebrar o cotidiano desafiador de suas vidas. Isto significa colocar-se ao lado dos pobres e com estes trabalhar na construção do Reino, que é lutar por uma sociedade onde todos tenham vida plena.
Fidelidade ao carisma é não perder de vista a verdade incontestável de nossa opção preferencial pelos pobres. Neste sentido, há certa destinação exclusiva na missão, ou seja, somos chamados somente para o serviço dos pobres. Numa reflexão muito lúcida, atual e oportuna, o Pe. Getúlio Mota Grossi, C.M. prioriza esta questão.[xiii] Sinteticamente, podemos afirmar que a fidelidade ao carisma será mantida no serviço dos pobres. Se estes forem marginalizados na reflexão e na prática eclesial da Família Vicentina, o carisma, certamente, deixará de existir. Mas o Espírito do Senhor, que faz a missão acontecer, não permitirá que isto aconteça, pois o projeto de Deus ultrapassa os limites do homem e da história.
O que o Jubileu diz à Igreja
A Celebração da morte de São Vicente e Santa Luísa tem uma profunda mensagem para a Igreja. A leitura histórica da vida do santo e da santa remete-nos à caridade. Esta se encontra na centralidade da mensagem de Jesus: caridade que constrói o Reino.[xiv] O testemunho de São Vicente e Santa Luísa chama a atenção da Igreja para a caridade para com os pobres. Trata-se de um sério convite: reavivar a chama do amor que defende e promove a dignidade da pessoa humana. A caridade não vê o outro como objeto, alguém que não pode nem sabe de nada, mas vê-lo como filho amado de Deus que nasceu para viver e construir o bem. O carisma da caridade vem nos recordar o outro, lembra-nos que não somos uma ilha no mundo e que a fraternidade é uma exigência evangélica que se manifesta no seguimento de Jesus de Nazaré.
Diante de uma sociedade que cultiva nas pessoas o egoísmo, o competitivismo, o isolamento, o ódio, o preconceito, a intolerância e tantos outros sentimentos destrutivos, a Igreja precisa aprender a ser cada vez mais acolhedora e misericordiosa. A frieza no ser humano está se tornando tão presente e comum que quando encontramos pessoas dadas à caridade para com os que padecem os males da vida cotidiana, principalmente a fome, ficamos admirados com tais exemplos. O ser humano tornou-se tão perigoso que há pessoas que não conseguem ser caridosas com o próximo, pois têm medo da sua reação imediata. Isto leva ao individualismo e à superficialidade da fé, ou seja, as pessoas procuram viver, isoladamente, a sua fé assumindo atitudes anticomunitárias. Outras pessoas comportam-se assim porque julgam ser o caminho mais fácil.
O outro, segundo São Vicente e Santa Luísa, é o pobre. Este é empobrecido pelo sistema opressor vigente, que explora e mata, sistematicamente. Mais do que em outras épocas, os empobrecidos estão submetidos a sofrimentos cada vez mais desumanos. Assistimos a certa “sofisticação” da crueldade, mata-se sutil, cruel e exacerbadamente a dignidade da pessoa, desfigurando-a. Para ilustrar, basta-nos ver o número assustador de jovens assassinados nos grandes centros urbanos, envolvidos com as drogas e a prostituição. A maioria deles é pobre. Outro vergonhoso exemplo da criminalização do pobre é o sistema carcerário brasileiro: Quase meio milhão de pobres encarcerados no Brasil, muitos sobrevivendo a um estado animalesco de vida nas prisões. No mundo, segundo os dados recentes da ONU, aproximadamente 925 milhões de pessoas passam fome todos os dias.
A Celebração deste Ano Jubilar vem dizer à Igreja: Volte-se para os pobres! Voltar-se para os pobres é assisti-los, material e espiritualmente. Se os empobrecidos não são evangelizados, as solenes liturgias realizadas nas igrejas perdem seu sentido, tudo não passa de aparência e mera satisfação dos sentidos. Não se pode falar de santidade fora da evangelização dos empobrecidos, pois o Cristo nos santifica neles; é servindo aos empobrecidos que encontramos a santidade como dom gratuito de Deus. Não existe santidade fora do amor que se faz doação, fora deste amor não existe salvação para o gênero humano nem para toda a criação.
Conclusão
A prática do carisma vicentino constrói o Reino de Deus. Assim, a Família Vicentina na Igreja deve ser um sinal da ação amorosa do Deus que não quer a morte do pecador, mas que o mesmo se converta e viva.[xv] A Celebração do Jubileu motiva-nos a continuarmos de “mangas arregaçadas” na vinha do Senhor. Os empobrecidos estão aí, diante de nossos olhos, não podemos virar-lhes as costas.[xvi] O lugar dos empobrecidos é o último lugar. Ir ao seu encontro é uma exigência evangélica desafiadora, pois quase ninguém quer ir.
A experiência missionária de Jesus revela que o mesmo nasceu, viveu e morreu no meio dos empobrecidos de seu tempo. Revela, ainda, que sempre estava rodeado daquelas pessoas mal afamadas da comunidade.[xvii] Permanecer junto dos empobrecidos, participando de suas vidas é exigência fundamental do exercício da caridade. A Igreja é chamada a permanecer junto dos empobrecidos e se deixar evangelizar por eles, porque “aquele que foi evangelizado, por sua vez, evangeliza”. [xviii]
Concluo esta reflexão com uma prece vocacional do próprio São Vicente e juntamente com ele peço ao Espírito do Senhor que não abandone a Igreja Povo de Deus à mercê da desesperança e do desamor:
Senhor, enviai operários à vossa Igreja,
mas que sejam bons;
enviai bons missionários, tais como devem ser,
para bem trabalhar em vossa vinha,
pessoas, ó meu Deus,
que sejam desapegadas de si mesmas,
de suas próprias comodidades e dos bens terrenos,
que sejam mesmo pouco numerosos,
mas sejam bons de verdade.
concedei, Senhor, esta graça à vossa Igreja.[xix]
Tiago de França da Silva
Notas:
[i] Lc 4, 18.
[ii] Coste – XI, 387.
[iii] Na época de São Vicente a maioria dos padres estava em Paris, pois se recusavam a trabalhar nas pequenas cidades e povoados pobres.
[iv] O Messias esperado, anunciado pelos profetas.
[v] Documento de Aparecida. Texto conclusivo da V Conferência Geral do Episcopado Latino-Americano e do Caribe, n. 392.
[vi] Coste – III, 359.
[vii] Documento conclusivo da 41ª Assembléia Geral da Congregação da Missão, n. 3.
[viii] Lc 4, 42 – 44.
[ix] Para um melhor aprofundamento sobre o problema do crer no mundo moderno ver LIBÂNIO, J.B. Crer num mundo de muitas crenças e pouca libertação. São Paulo: Paulinas, 2003.
[x] Quando decidiu ser padre, Vicente de Paulo não tinha boas intenções para com o sacerdócio, pois almejava ficar rico e ajudar sua pobre família.
[xi] Documento de Aparecida. Texto conclusivo da V Conferência Geral do Episcopado Latino-Americano e do Caribe, n. 392 e 393.
[xii] O testemunho de vida das Irmãs Dorothy Stang e Lindalva Justo de Oliveira (Filha da Caridade) é um exemplo sublime disso.
[xiii] GROSSI, Getúlio Mota. Um místico da Missão, Vicente de Paulo. Contagem: Santa Clara, 2001, cap. 2.
[xiv] Mt 5, 43 – 48; 1 Cor 13, 13.
[xv] Cf. Ez 33, 11; Lc 15, 32.
[xvi] Documento conclusivo da 41ª Assembléia Geral da Congregação da Missão, n. 3.
[xvii] Cf. Lc 15, 1 – 2.
[xviii] Exortação Apostólica Evangelii Nuntiandi do Papa Paulo VI sobre a evangelização no mundo contemporâneo. São Paulo: Paulinas, 1999, n. 24.
[xix] Coste – XI, 357. In: Congregação da Missão no Brasil. Orações e Invocações. Curitiba: Gráfica Editora Vicentina Ltda. EPP, 2004, p. 87 – 88.
A Família Vicentina em toda a Igreja tem a alegria de celebrar o Jubileu dos 350 anos da morte de São Vicente de Paulo e Santa Luísa de Marillac (27 de setembro de 2009 a 27 de setembro de 2010). De fato, é uma data feliz porque é uma oportunidade de não somente fazer a memória dos santos fundadores, mas de rever os passos dados durante todos estes anos. A presente reflexão pretende abordar, brevemente, sobre algumas intuições do carisma vicentino que traduzem com perfeição e ousadia profética o significado deste Jubileu. Buscar o significado da morte dos fundadores da Família Vicentina significa retomar a centralidade do carisma, a fim de que o mesmo permaneça aceso na vida da Igreja e do mundo.
O carisma vicentino
Ninguém melhor do que São Vicente para falar claramente sobre o sentido verdadeiro do carisma. Aos Padres da Missão ele diz:
Fazer os pobres conhecerem a Deus, anunciando-lhes Jesus Cristo, dizer-lhes que
o reino dos céus já chegou e que este reino é para os pobres. Como isto é
grande! E que fomos chamados para ser companheiros e para participarmos dos
planos do Filho de Deus, é algo que supera nossa compreensão. Que! Fazermos...
não me atrevo a dizer sim; evangelizar os pobres é um serviço tão grande, que é
por excelência o ofício do Filho de Deus! Somos instrumentos para que o Filho de
Deus continue fazendo no céu o que fez na terra. Que grande motivo para louvar a
Deus, meus irmãos, e agradecer incessantemente esta graça.[ii]
Pontuemos alguns aspectos desta citação vicentina:
1) Fazer os pobres conhecerem a Deus, anunciando-lhes Jesus Cristo. Anunciar a pessoa de Jesus e seu Evangelho: eis a missão de todo cristão. Com isto, percebemos que São Vicente de Paulo era um homem sintonizado com o Evangelho e profundamente cristológico. Os seus escritos revelam que sua preocupação fundamental era o anúncio da Boa Notícia aos pobres. Era um homem preocupado com os pobres, a exemplo de Jesus. O santo fundador recorda à Igreja o anúncio do Evangelho aos pobres numa realidade em que estes eram praticamente esquecidos.[iii] Tendo em vista a evangelização dos pobres, São Vicente funda as confrarias da caridade (1617), a Congregação da Missão (1625) e a Companhia das Filhas da Caridade (1633). Estas Comunidades nasceram com destinação especial e fundamental: os pobres.
2) Dizer-lhes que o reino dos céus já chegou e que este reino é para os pobres. O Evangelho mostra claramente que Jesus veio a este mundo para inaugurar o Reino de Deus. Na citação de Lc 4, 18 encontramos as primeiras palavras de Jesus ao assumir publicamente a missão. O autêntico sentido do texto revela que o Ungido do Pai[iv] assegura que a Boa Notícia é para os pobres. Jesus faz tal proclamação porque sabia que os pobres sempre foram as maiores vítimas das opressões produzidas pelos sistemas que governaram e governam este mundo. É justamente por isso que a Igreja latino-americana tomou a iniciativa de tomar para si esta opção de Jesus: opção preferencial pelos pobres.[v]
3) Evangelizar os pobres é um ofício tão grande, que é por excelência o ofício do Filho de Deus. São Vicente nos ensina que ser missionário é participar da missão do Filho de Deus, ou seja, evangelizar. Evangelizar, segundo São Vicente, é servir aos pobres: “Não há melhor modo de assegurar nossa felicidade eterna do que viver e morrer no serviço dos pobres, nos braços da Providencia e numa verdadeira renúncia a nós mesmos em seguimento de Jesus Cristo".[vi] Este viver e morrer no serviço dos pobres, para São Vicente, significa evangelizar. Assim, não podemos entender evangelização fora do serviço dos pobres. Com mais ênfase podemos afirmar: Se não há serviço afetivo e efetivo aos pobres não há evangelização. O chamado de Deus é para que todos os batizados sejam continuadores da ação missionária de Jesus, participantes de sua missão.
Fidelidade ao carisma
Em Paris, França, entre os dias 18 de junho e 16 de julho do corrente ano, a Congregação da Missão celebrou a sua 41ª Assembléia Geral. Eis o que diz o Documento conclusivo:
Fidelidade a nosso carisma significa continuar o amor de Cristo e o serviço dos
Pobres. Os Pobres chegaram até nós, de modo impactante, através dos vídeos que
marcaram cada sessão. Os Pobres não são meras categorias, são pessoas reais, com
necessidades e sofrimentos reais. Falam-nos porque esperam que os escutemos, que
ouçamos suas histórias e não lhes viremos as costas. Nossa resposta irá além do
minuto de interiorização, da oração pessoal e das celebrações litúrgicas. Como
São Vicente, que contemplou o rosto de Cristo nos Pobres de seu tempo e procurou
remediar seus sofrimentos, também nós devemos ser suficientemente valentes para
partilhar sua pobreza. Movidos pelo amor, iremos aonde os Pobres nos chamarem,
inclusive aonde outros não se atrevem a ir, e sempre encontraremos formas
criativas para remediar as necessidades deles.[vii]
A humildade leva-nos ao reconhecimento da condição humana e suas inerentes fraquezas. Partindo desse pressuposto, é preciso admitir que há uma crise carismática em todas as famílias religiosas que formam a Igreja. Com muita facilidade e de maneira pecaminosa, os carismas dos fundadores são esquecidos e/ou relativizados em nome de algumas releituras e atitudes que se mostram cada vez mais equivocadas. Por outro lado, é preciso admitir, também, que há significativo esforço por parte de muitos membros das famílias religiosas para reacender ou ressuscitar tais carismas, tão necessários para a construção do Reino de Deus. Os carismas que visam tal construção são verdadeiros frutos da ação do Espírito Santo na vida de mulheres e homens que se deixaram conduzir pelo amor que se faz serviço gratuito e generoso ao próximo.
No caso da Família Vicentina, composta por dezenas de ramos chamados ao serviço fraterno dos pobres, trata-se de zelar por aquilo que diz a citação acima. Frisemos, pois, alguns pontos relevantes para nossa reflexão, a saber:
1) Fidelidade ao nosso carisma significa continuar o amor de Cristo e os serviço dos Pobres. Continua-se o amor de Cristo no serviço dos Pobres, ou seja, não podemos entender o amor de Cristo fora do serviço aos Pobres, pois Jesus não fez outra coisa em sua passagem no mundo senão servir os pobres.[viii] Nenhum ramo da Família Vicentina pode se deixar levar pela onda espiritualista que invadiu a Igreja de nossos dias, afastando-a do seguimento de Jesus de Nazaré. Os espiritualismos produzem superficialidade e alienação e é um mal constante na Igreja.[ix] Trata-se de uma alienação que distancia do serviço e da “vivência” de uma fé sem caridade. Sem esta, a Família Vicentina perde o seu sentido de existir na Igreja.
2) Como São Vicente, que contemplou o rosto de Cristo nos Pobres de seu tempo e procurou remediar seus sofrimentos, também nós devemos ser suficientemente valentes para partilhar sua pobreza. A conversão de São Vicente aconteceu no encontro com o pobre.[x] Para ele, o pobre foi o lugar de encontro com Cristo. Hoje, a própria Igreja resolveu tentar assumir o pobre como lugar teológico e declarou que a opção pelos pobres está implícita na fé cristológica[xi] da Igreja. Para que tal opção se torne afetiva e efetivamente presente na vida da Família Vicentina e na vida da Igreja é necessário que sejamos suficientemente valentes, ou seja, trata-se de uma opção de vida. Optar pelos pobres exige coragem e ousadia profética, pois é uma missão difícil, que exige sacrifícios e renúncias e, muitas vezes, a entrega total da própria vida.[xii]
Participar da pobreza dos pobres é um desafio imenso, pois o mundo demoniza a pobreza e a produz constantemente. São Vicente e Santa Luísa nos ensinam que participar da missão de Jesus é participar da vida dos pobres e esta participação consiste no despojamento total de nós mesmos para o seguimento de Jesus evangelizador dos Pobres. Em termos práticos significa abraçar um estilo de vida humilde e simples como o dos pobres; participar de suas lutas e esperanças; reivindicar, defender e promover seus direitos e sua dignidade; denunciar as injustiças que lhes são cometidas e celebrar o cotidiano desafiador de suas vidas. Isto significa colocar-se ao lado dos pobres e com estes trabalhar na construção do Reino, que é lutar por uma sociedade onde todos tenham vida plena.
Fidelidade ao carisma é não perder de vista a verdade incontestável de nossa opção preferencial pelos pobres. Neste sentido, há certa destinação exclusiva na missão, ou seja, somos chamados somente para o serviço dos pobres. Numa reflexão muito lúcida, atual e oportuna, o Pe. Getúlio Mota Grossi, C.M. prioriza esta questão.[xiii] Sinteticamente, podemos afirmar que a fidelidade ao carisma será mantida no serviço dos pobres. Se estes forem marginalizados na reflexão e na prática eclesial da Família Vicentina, o carisma, certamente, deixará de existir. Mas o Espírito do Senhor, que faz a missão acontecer, não permitirá que isto aconteça, pois o projeto de Deus ultrapassa os limites do homem e da história.
O que o Jubileu diz à Igreja
A Celebração da morte de São Vicente e Santa Luísa tem uma profunda mensagem para a Igreja. A leitura histórica da vida do santo e da santa remete-nos à caridade. Esta se encontra na centralidade da mensagem de Jesus: caridade que constrói o Reino.[xiv] O testemunho de São Vicente e Santa Luísa chama a atenção da Igreja para a caridade para com os pobres. Trata-se de um sério convite: reavivar a chama do amor que defende e promove a dignidade da pessoa humana. A caridade não vê o outro como objeto, alguém que não pode nem sabe de nada, mas vê-lo como filho amado de Deus que nasceu para viver e construir o bem. O carisma da caridade vem nos recordar o outro, lembra-nos que não somos uma ilha no mundo e que a fraternidade é uma exigência evangélica que se manifesta no seguimento de Jesus de Nazaré.
Diante de uma sociedade que cultiva nas pessoas o egoísmo, o competitivismo, o isolamento, o ódio, o preconceito, a intolerância e tantos outros sentimentos destrutivos, a Igreja precisa aprender a ser cada vez mais acolhedora e misericordiosa. A frieza no ser humano está se tornando tão presente e comum que quando encontramos pessoas dadas à caridade para com os que padecem os males da vida cotidiana, principalmente a fome, ficamos admirados com tais exemplos. O ser humano tornou-se tão perigoso que há pessoas que não conseguem ser caridosas com o próximo, pois têm medo da sua reação imediata. Isto leva ao individualismo e à superficialidade da fé, ou seja, as pessoas procuram viver, isoladamente, a sua fé assumindo atitudes anticomunitárias. Outras pessoas comportam-se assim porque julgam ser o caminho mais fácil.
O outro, segundo São Vicente e Santa Luísa, é o pobre. Este é empobrecido pelo sistema opressor vigente, que explora e mata, sistematicamente. Mais do que em outras épocas, os empobrecidos estão submetidos a sofrimentos cada vez mais desumanos. Assistimos a certa “sofisticação” da crueldade, mata-se sutil, cruel e exacerbadamente a dignidade da pessoa, desfigurando-a. Para ilustrar, basta-nos ver o número assustador de jovens assassinados nos grandes centros urbanos, envolvidos com as drogas e a prostituição. A maioria deles é pobre. Outro vergonhoso exemplo da criminalização do pobre é o sistema carcerário brasileiro: Quase meio milhão de pobres encarcerados no Brasil, muitos sobrevivendo a um estado animalesco de vida nas prisões. No mundo, segundo os dados recentes da ONU, aproximadamente 925 milhões de pessoas passam fome todos os dias.
A Celebração deste Ano Jubilar vem dizer à Igreja: Volte-se para os pobres! Voltar-se para os pobres é assisti-los, material e espiritualmente. Se os empobrecidos não são evangelizados, as solenes liturgias realizadas nas igrejas perdem seu sentido, tudo não passa de aparência e mera satisfação dos sentidos. Não se pode falar de santidade fora da evangelização dos empobrecidos, pois o Cristo nos santifica neles; é servindo aos empobrecidos que encontramos a santidade como dom gratuito de Deus. Não existe santidade fora do amor que se faz doação, fora deste amor não existe salvação para o gênero humano nem para toda a criação.
Conclusão
A prática do carisma vicentino constrói o Reino de Deus. Assim, a Família Vicentina na Igreja deve ser um sinal da ação amorosa do Deus que não quer a morte do pecador, mas que o mesmo se converta e viva.[xv] A Celebração do Jubileu motiva-nos a continuarmos de “mangas arregaçadas” na vinha do Senhor. Os empobrecidos estão aí, diante de nossos olhos, não podemos virar-lhes as costas.[xvi] O lugar dos empobrecidos é o último lugar. Ir ao seu encontro é uma exigência evangélica desafiadora, pois quase ninguém quer ir.
A experiência missionária de Jesus revela que o mesmo nasceu, viveu e morreu no meio dos empobrecidos de seu tempo. Revela, ainda, que sempre estava rodeado daquelas pessoas mal afamadas da comunidade.[xvii] Permanecer junto dos empobrecidos, participando de suas vidas é exigência fundamental do exercício da caridade. A Igreja é chamada a permanecer junto dos empobrecidos e se deixar evangelizar por eles, porque “aquele que foi evangelizado, por sua vez, evangeliza”. [xviii]
Concluo esta reflexão com uma prece vocacional do próprio São Vicente e juntamente com ele peço ao Espírito do Senhor que não abandone a Igreja Povo de Deus à mercê da desesperança e do desamor:
Senhor, enviai operários à vossa Igreja,
mas que sejam bons;
enviai bons missionários, tais como devem ser,
para bem trabalhar em vossa vinha,
pessoas, ó meu Deus,
que sejam desapegadas de si mesmas,
de suas próprias comodidades e dos bens terrenos,
que sejam mesmo pouco numerosos,
mas sejam bons de verdade.
concedei, Senhor, esta graça à vossa Igreja.[xix]
Tiago de França da Silva
Notas:
[i] Lc 4, 18.
[ii] Coste – XI, 387.
[iii] Na época de São Vicente a maioria dos padres estava em Paris, pois se recusavam a trabalhar nas pequenas cidades e povoados pobres.
[iv] O Messias esperado, anunciado pelos profetas.
[v] Documento de Aparecida. Texto conclusivo da V Conferência Geral do Episcopado Latino-Americano e do Caribe, n. 392.
[vi] Coste – III, 359.
[vii] Documento conclusivo da 41ª Assembléia Geral da Congregação da Missão, n. 3.
[viii] Lc 4, 42 – 44.
[ix] Para um melhor aprofundamento sobre o problema do crer no mundo moderno ver LIBÂNIO, J.B. Crer num mundo de muitas crenças e pouca libertação. São Paulo: Paulinas, 2003.
[x] Quando decidiu ser padre, Vicente de Paulo não tinha boas intenções para com o sacerdócio, pois almejava ficar rico e ajudar sua pobre família.
[xi] Documento de Aparecida. Texto conclusivo da V Conferência Geral do Episcopado Latino-Americano e do Caribe, n. 392 e 393.
[xii] O testemunho de vida das Irmãs Dorothy Stang e Lindalva Justo de Oliveira (Filha da Caridade) é um exemplo sublime disso.
[xiii] GROSSI, Getúlio Mota. Um místico da Missão, Vicente de Paulo. Contagem: Santa Clara, 2001, cap. 2.
[xiv] Mt 5, 43 – 48; 1 Cor 13, 13.
[xv] Cf. Ez 33, 11; Lc 15, 32.
[xvi] Documento conclusivo da 41ª Assembléia Geral da Congregação da Missão, n. 3.
[xvii] Cf. Lc 15, 1 – 2.
[xviii] Exortação Apostólica Evangelii Nuntiandi do Papa Paulo VI sobre a evangelização no mundo contemporâneo. São Paulo: Paulinas, 1999, n. 24.
[xix] Coste – XI, 357. In: Congregação da Missão no Brasil. Orações e Invocações. Curitiba: Gráfica Editora Vicentina Ltda. EPP, 2004, p. 87 – 88.