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segunda-feira, 7 de junho de 2010

São Vicente de Paulo e a esperança dos pobres


No dia 27 de setembro de cada ano, a Família Vicentina na Igreja celebra a memória de São Vicente de Paulo, sacerdote francês do século XVII. A história conta que o mesmo queria ser padre, mas não tinha boas intenções para com o ministério ordenado. A sua época era de grandes santos, mas também de grandes pecados. Inicialmente, queria ser um homem importante na Igreja e na sociedade. Ser padre no tempo de São Vicente, assim como para muitos hoje, era ocupar um estatus, colocação eclesiástica que conferia poder e visibilidade. O poder e a visibilidade (prestígio social) sempre foram dois males que perseguiram e que perseguem até hoje a vida dos presbíteros e bispos da Igreja. Quando São Vicente resolve iniciar o processo de conversão em sua vida, se dá o enfrentamento de tais males.

O padre católico do tempo de São Vicente, assim como muitos nos dias de hoje, pouco se importava com o sofrimento dos pobres. A esperança dos pobres iniciada com Jesus era totalmente marginalizada, pois os padres só estavam interessados com o poder. O sacerdócio ministerial e episcopal do século XVII, salvo as exceções, estava voltado para a legitimação do poder real. Estar a serviço da corte real era um privilégio disputadíssimo pelos padres e bispos. Todos eram mantidos pelo rei. Este explorava o povo e os clérigos rezavam para que o povo se mantivesse em silêncio e em plena obediência ao regime monárquico. Havia também os clérigos e religiosas enclaustradas, que no silêncio da vida contemplativa se contentavam somente em rezar. Para os contemplativos, a busca da perfeição pessoal era a meta. O mundo externo não interessava. A vida ascética era uma constante nos monastérios.

E o padre Vicente, inicialmente, também queria fazer parte daqueles que legitimavam o poder real em troca de dinheiro e poder, mas não teve muito êxito na busca. Alguns momentos ou experiências fizeram o padre Vicente pensar no chamado de Nosso Senhor, a saber: a acusação de furto, a tentação contra a fé, o sermão de Folleville e a realidade de Châtillon. Diferentemente de outros santos, o padre Vicente vai se convertendo no encontro com a esperança dos pobres. O encontro com a miséria do povo de Deus revelada na vida dos pobres levou o padre Vicente a assumir o divino ofício do Filho de Deus: ser um missionário evangelizador dos pobres. Quando descobre Jesus como evangelizador dos pobres renuncia imediatamente o projeto inicial que traçou para a sua vida ministerial. Não se tratou de uma conversão mágica, de um dia para a noite, mas de um processo da descoberta divina na vida dos pobres. Neste sentido, São Vicente é um dos santos mais originais da Igreja.

Quando associa as senhoras ricas para o exercício da caridade com os pobres, o padre Vicente fica triste porque elas só queriam ajudar financeiramente, sem tocar nos pobres nem misturar-se com eles. Pensando no serviço afetivo e efetivo para com os pobres desvalidos, neste tocar e viver com os pobres, ele encontra em Luísa de Marillac uma solução possível. Juntamente com outras jovens camponesas faz com que elas se tornem filhas da caridade. Ser filha da caridade significava amar os pobres de verdade, servindo-os não a partir da corte real, mas a partir da realidade deles. A filha da caridade era uma jovem leiga, sem o status de freira ou monja, e que deveria pobremente entre os pobres. As senhoras ricas custeavam as obras e as pobres camponesas filhas da caridade exerciam efetivamente a missão junto aos pobres.

Pensando na triste situação do clero, o padre Vicente pensa na formação. Salvo as exceções, a grande maioria do clero era de péssima formação. Muitos nem a Missa sabiam celebrar! A ignorância fazia-os cometer sacrilégios bárbaros nas comunidades, sem contar o espírito da corrupção tomando conta da vida clerical. O desejo do padre Vicente era de fazer o clero repensar a vocação e servir com mais dignidade à Igreja. Além disso, também pensava em levá-lo a repensar a vocação no serviço aos pobres. O povo do campo era esquecido pelo clero, pois os padres não queriam assumir as paróquias do meio rural, uma vez que elas não lhes rendiam dinheiro. É pensando nos pobres e numa sólida formação do clero que o padre Vicente organiza a Companhia da Missão. A família Gondi é o suporte financeiro para a fundação da Companhia, pois Vicente era um padre de origem humilde.

A grande preocupação do padre Vicente era que os padres se mantivessem fiéis ao propósito fundacional: o serviço aos pobres. Formar bem os padres tendo em vista a caridade para com os pobres. Há uma palavra do padre Vicente dirigida ao padre Portail, um dos primeiros membros da Companhia da Missão, que diz: “Lembre-se, padre, que vivemos em Jesus Cristo pela morte de Jesus Cristo, e que temos que morrer em Jesus Cristo pela vida de Jesus Cristo; que nossa vida deve estar oculta em Jesus Cristo e plena de Jesus Cristo, e que para morrer como Jesus Cristo devemos viver como Jesus Cristo” (I, 320). Esta é uma das sentenças vicentinas que mais me chama a atenção. Aqui aparece o caráter cristológico do carisma vicentino.

Lendo Jesus no Evangelho e São Vicente na história veremos que São Vicente não se identificou com o Jesus glorioso ou milagreiro anunciado por muitos, mas com o Cristo evangelizador dos pobres. Jesus e os pobres são a centralidade do carisma, sendo que “Jesus Cristo é a regra da Missão” (XI, 429). Não se trata de confundir Jesus com os pobres, como apontou recentemente o teólogo Clodovis Boff em sua crítica teológico-metodológica à Teologia da Libertação, mas entender que Jesus fez uma opção pelos pobres e os Padres da Missão devem fazer a mesma coisa. São Vicente precedeu o Concílio Vaticano II e a Conferência de Medellín e Puebla na opção preferencial pelos pobres. A opção pelos pobres feita por ele não se tratava de um tratado de fé ou uma exposição dogmática, mas de uma prática cotidiana de amor para com os pobres prediletos de Jesus. Ele fez uma leitura encarnada do Cristo evangelizador dos pobres.

Tendo dito isto, pergunto: e a esperança dos pobres? Onde ela se encontra neste contexto? Optar pelos pobres na radicalidade do seguimento de Jesus é assumir a esperança dos pobres. Quando Deus enviou Jesus a este mundo com a missão de inaugurar o Reino de Deus, ele plantou uma esperança. A fé cristã alimenta esta esperança. Os cristãos acreditam no Reino de Deus e esperam a sua plena edificação. Esta esperança move a nossa fé e nos faz agentes de transformação no mundo. Não se trata de uma esperança escatológica, mas de uma esperança fortemente profética. O cristão é chamado a viver profeticamente a sua fé na construção do Reino de Deus. A esperança cristã está diretamente relacionada e ligada ao Reino de Deus.

A caridade vivenciada e anunciada por São Vicente convida a Família Vicentina e toda a Igreja para despertar e alimentar a esperança dos pobres. São Vicente com sua prática alimentava a esperança dos pobres, por isso que insistia tanto no anúncio do Evangelho. A proposta vicentina não estava voltada para a assistência material aos pobres, mas também para a conversão a Jesus Cristo. Assistência puramente material é assistencialismo. O carisma vicentino não é assistencialista, mas evangelizador. Não existe carisma para o assistencialismo, mas para a caridade. Não se trata de dar o que os pobres precisam para viver, mas fazê-los encontrar saídas para a solução de seus problemas temporais e espirituais. São Vicente praticava a orar-ação.

Em todos os tempos e lugares os pobres sempre foram explorados e excluídos. Negar a opção preferencial pelos pobres é negar a esperança dos pobres. Jesus veio alimentar tal esperança e com sua Ressurreição assegurou que a esperança cristã não é qualquer esperança, mas uma esperança que supera todas as demais. O Apóstolo Paulo ensina-nos que a esperança cristã, produzida pela fidelidade a Cristo não decepciona (cf. Rm 5, 5). Crer nesta esperança é “colocar-se no caminho de Jesus e perseverar”, ensina-nos José Comblin. Jesus participou da sorte dos pobres de seu tempo e São Vicente fez a mesma coisa. Participar da sorte dos pobres é participar de sua esperança e isto tem um preço. No caso de Jesus, tal preço se manifestou na Cruz, pois esta foi a conseqüência natural de sua opção pelos despossuídos e maltratados deste mundo.

Participar da esperança dos pobres é unir-se a eles na luta por libertação. Recentemente, com o Concílio Vaticano II e com as reflexões que se dão no Conselho Episcopal Latino-americano, a Igreja redescobriu o Evangelho de Jesus. O padre José Comblin afirma que a Igreja ainda não conseguiu fazer uma opção preferencial pelos pobres, pois ainda se encontra apegada ao poder e ao prestígio, mas algumas mulheres e homens durante toda a história souberam amar Cristo e seus irmãos. Tudo na Igreja é lento e gradativo, por um lado isto é bom, por outro é prejudicial. É bom porque toda mudança exige cautela. É ruim porque nem todos têm paciência para esperar por tais mudanças e a evasão de fiéis da Igreja é uma prova concreta disto.

São Vicente ajudou com seu testemunho de vida no processo de conversão da Igreja. Eram muitos os padres e bispos que o escutavam, admirados com seu ensinamento. O ensinamento de São Vicente era o de Jesus. A esperança dos pobres precisa ser alimentada cada vez mais, pois as forças contrárias ao Reino de Deus são muitas: fome, violência, desemprego, corrupção, exploração sexual etc. A vida dos pobres continua sendo ameaçada, mas a fé em Deus os faz persistir na caminhada. A Família Vicentina é chamada a somar forças nas lutas dos pobres, pois sem estes o carisma se desfigura e morre. É preciso atualizar tal opção e manter a fidelidade ao fundador. É preciso que Jesus olhe para nós e diga: “Eis um vicentino verdadeiro, sem falsidade” (cf. Jo 1, 47).

Certamente, são muitas as dificuldades que se encontram no caminho da caridade. Às vezes, os obstáculos superam a fé de muitos e as desistências se fazem presentes. O conhecimento de Jesus Cristo e do próprio carisma vicentino é uma oportunidade para avaliar a caminhada. Esta se dá em meio aos desacertos da vida. Jesus viveu santamente tais limitações, porque era homem como nós. Nossa permanência entre os pobres é uma exigência do carisma e uma oportunidade para vivermos a desafiadora opção de amar aqueles que não são amados nem vistos pela sociedade capitalista. Recuperar Jesus como centro e regra da Missão é fortalecer nossa unidade para com a Trindade, comunidade de amor que nos chama a amar. Que São Vicente interceda por nós a Jesus e nos alcance o perdão pelas vezes que nos acomodamos diante da luta e dos sofrimentos dos pobres e nos alcance também a graça de servi-los fielmente nesta vida, uma vez que “são nossos mestres e senhores” (XI, 273).


Tiago de França da Silva